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Nelson Rodrigues dramatizado em profundidade
28/07/2006
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Muitas e muitas vezes Nelson Rodrigues já foi encenado. Muitas e muitas vezes Nelson Rodrigues já foi dançado. Assim, à primeira vista, poder-se-ia imaginar: é mais um espetáculo de dança baseado em Nelson Rodrigues. Mas Mulheres Insones é um pouco mais do que isso. É, de certo modo, um espetáculo definitivo. A partir das sugestões retiradas dos textos de Senhora dos Afogados, Álbum de Família, Anjo Negro, Dorotéia, Vestido de Noiva e Valsa nº 6, o diretor Décio Antunes e a coreógrafa Carlota Albuquerque criaram um espetáculo inesquecível. Não se trata de destacar um ou outro aspecto do trabalho que vem sendo apresentado no Museu do Trabalho, mas sim, de avaliar e elogiar e saudar o espetáculo como um todo, em que nenhuma parte pode ser esquecida, porque senão, ele não seria exatamente o que é.
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Comecemos pela escolha do local. O Museu do Trabalho é considerado por muitos um lugar mais o menos marginalizado, por sua localização, por sua aparente pobreza, etc. Pois Décio Antunes e Carlota Albuquerque souberam retirar de todos esses senões justamente as qualidades do espaço: sua potencialidade infinita para aceitar e concretizar qualquer idéia, qualquer espaço, qualquer tipo de espetáculo, por mais ousado quem fosse, como esse, literalmente tridimensional. Assim é que, por vezes, temos três a quatro ações simultâneas, nos praticáveis aéreos, nos diferentes espaços terrestres, nas portas entreabertas, nos montes de areia, etc. E isso nos dá uma multiplicidade de aspectos da obra de Nelson Rodrigues, como se estivéssemos a lhe descobrir, via personagens, suas múltiplas faces.
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Depois, a cenografia propriamente dita, de autoria de ambos os diretores, e mais Félix Bressan, que tem enorme prática em cenários incomuns em espaços amplos e abertos, como nesse caso. Valeu tudo: camas velhas desmontadas, areia aos montes, praticáveis sustentados por longas barras de ferro, até mesmo um piano em cena, que é executado magistralmente por Karin Engel (e que refere a peça Valsa nº 6, naturalmente, que, aliás, é interpretada em determinado momento; além de adereços inusitados como as pás, que são aproveitadas, em diferentes momentos, para a exacerbação do ritmo do trabalho. Depois, o figurino de Daniel Lion, ao mesmo tempo sensual (por suas sugestões) mas recatado (garantindo que não houvesse nudez gratuita). A iluminação de Guto Greca é precisa, eu diria milimétrica, pois ilumina estritamente o que é necessário, valorizando-se, assim, e o intérprete. As esculturas corporais de Bruno Teixeira e Félix Bressan, colocadas sobre Ângela Spiazzi em certo momento do espetáculo, lembram ficção científica e, ao mesmo tempo, filmes de terror. A trilha sonora de Flávio Oliveira é carinhosa, sensível e cuidadosamente escolhida, indicando os temas e os climas, desenvolvendo-os, comentando-os, ampliando-os, realizando, enfim, o elo de ligação entre o texto que inspirou a cena e a sua dramatização visual. Aliás, o cuidado é tão grande que as passagens do piano ao vivo para o piano gravado na trilha sonora são quase imperceptíveis não fora a ausência da pianista de seu instrumento.
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Dentre as intérpretes, não se ode nem se deve destacar nenhuma. Evidentemente Angela Spiazzi é mais citada porque, de certo modo, é a solista do espetáculo. É em torno dela que todas as demais ações giram. Mas Gabriela Greco e Naiara Harry (atrizes), ao contracenarem com as bailarinas Gabriela Peixoto, Joana do Amaral e Tânia Baumann, nada ficam devendo umas às outras: as atrizes se revelam boas bailarinas e as bailarinas ótimas atrizes.
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Escolher temas de Nelson Rodrigues a partir de suas peças é sempre uma operação aleatória. Qualquer obra que seja escolhida serve. Qualquer trecho que seja preferido sugere algo. Qualquer passagem que destaquemos nos tem algo a dizer e se relaciona umbilicalmente com todo o restante da obra do dramaturgo. Por tudo isso, a escolha de Décio Antunes e Carlota Albuquerque foi especialmente feliz. Aleatória, a escolha foi precisa, cirurgicamente separada do todo, mas mantida em relação com aquele todo de onde adveio. Sensualidade, dramaticidade, ambigüidade, todos os sentimentos e todas as experiências puderam ser descobertas nesta espetáculo de pouco mais de uma hora de duração, mas que é literalmente visceral, até mesmo pelos riscos físicos em que coloca as intérpretes, bastando que se observe as diferentes bandagens aplicadas sobre seus braços e pernas. Espetáculo imperdível, um dos melhores, desde logo, desta temporada de artes cênicas em nossa cidade.
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Autor: Antonio Holfeldt
Fonte: Jornal do Comércio
Obs.: com correções

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